Trechos

(...) ― Olá, Carmen ― a voz saiu insegura e mais rouca do que o normal. ― Meu nome é Violante. Podemos conversar um pouco sobre o seu pai?
― Não tenho mais pai ― o rancor era visível; a respiração era pesada. ― Ele te mandou aqui?
Violante sentiu o primeiro impacto. Já recuara na prova em três ocasiões, mas isso não podia mais acontecer sem consequências concretas. Não podia adiar mais, mas o temor da dureza da prova crescia dentro dela.
Minha Senhora ― o pensamento era carregado de medo. ― Não sei se vou conseguir.
Claro que vai ― a resposta veio em uma energia leve. ― Sara precisa da verdade. Liberte-a desse peso. Percorra o seu caminho; ela te seguirá. Seja o exemplo que arrasta. Estão juntas há sete reencarnações seguidas, e você já a conquistou por mérito. Estarei contigo até o fim.
Carmen não via, mas Diana cintilava e emitia pensamentos em nuvens coloridas e brilhantes. As vibrações etéreas ajudariam a dissolver os miasmas, como se fosse o choque anímico de um médium. Sem esse recurso, o processo seria bem mais pesado para as duas.
― Carmen ― a guia começou, com a voz quase falhando. ― Escute. Você precisa perdoá-lo ― a língua e a consciência tornaram-se de chumbo. Percebeu que falava mais para si mesma.
― PERDOAR? ― gritou pavorosamente; chegou mais perto. — ELE? NUNCA!
Violante tinha que se controlar e provar que havia se perdoado. Precisava superar seu passado e levá-la pelo caminho; contudo, ainda não era o momento. O coração de Carmen estava ainda saturado de ódio. Diana a ensinara há muito tempo. Destruir para reconstruir. Era imperioso continuar e manter-se no foco.
Diana esforçava-se para manter a vibração quando uma chuva de pensamentos caiu sobre sua mente. Preparara a irmã por quase um milênio para aquele momento. Já descera ao Abismo para buscá-la e desceria até o inferno se ele existisse e quantas vezes fossem necessárias, mas não sabia se os mentores permitiriam novamente. Eles teriam razão. Ela decidiria da mesma forma, e esse receio estava desviando a sua atenção. Precisava, ela também, de foco. Violante era sua responsabilidade. Não se permitiria falhar.
― Disciplina ― ouviu a própria voz severa ―; disciplina; disciplina!
A supervisora esvaziou a mente, cobrou novo ânimo e elevou as mãos, inundando o ambiente de luz.


― Carmen ― recomeçou Violante. ― Perdoe aqueles que te feriram por ignorância. Liberte-se. É possível ― os sentimentos que jaziam no fundo no espírito vieram à superfície. Lágrimas borbulharam descontroladamente. (...)
A Era do Espírito: O Mundo Real
Perdão



(...) Depois de muito tempo ― horas, dias? ― aquilo se tornou insuportável. Fui apagando. Achei que o veneno demorara a agir, e que estaria finalmente morrendo.
Despertei com um susto; ainda no escuro. Estava preparada para continuar com toda aquela dor. Um vento polar soprava furioso, quase me congelando e ferindo-me como navalha. Um cheiro horroroso empesteava o ar que eu tentava puxar dolorosamente com um sibilo horrível. Continuei sem entender como ainda estava viva, mas foi indescritível o alívio de perceber que sentia novamente e que podia me mexer.
Ouvi um tipo de farfalhar. Coisas pareciam arrastar-se bem perto de mim. Apurei o ouvido e parei de tentar respirar. O som aumentou, e identifiquei alguns grunhidos. Meu medo multiplicou-se no escuro daquele lugar desconhecido. Pulei assustada quando, repentinamente, alguma coisa que parecia uma mão gosmenta e fria me tocou. Logo senti outra, e outra, e outra... Gritei mais alto do que eu esperava, e as formas afastaram-se um pouco, gemendo estranhamente. Corri para lugar algum. Os seres começaram a seguir-me e desistiram em algum momento. Não sei por quanto tempo vaguei sem destino, sem saber de onde vinha ou para onde ia. Fome e sede, além do frio, começavam a castigar-me.
Era difícil andar no escuro e naquele chão cheio de pedras e bichos. Tropecei e caí muitas vezes de cara no chão. Tinha que sair dali. Não via absolutamente nada e minhas mãos iam tateando o breu. A ansiedade aumentava com a dificuldade enorme de respirar, emitindo aquele som dolorido ao inspirar o ar gélido.
Alguma coisa, talvez um morcego enorme, passou e bateu em mim, soltando um chiado. Vários deles passaram depois do primeiro, derrubando-me em cima das pedras afiadas. Ao tentar escapar daquelas lâminas, escorreguei na lama fétida, e os cortes arderam como queimaduras. Pensava apenas que todos sofreriam as consequências quando eu voltasse. Já estava muito cansada. Encontrei um canto para descansar e adormeci imediatamente, encostada em uma pedra fria.


Acordei assustada. Quase congelada. O pescoço parecia inchado e senti picadas enormes de insetos. Muitos ainda estavam em cima de mim, sugando-me avidamente. Em minhas pernas havia bichos que deviam ser sanguessugas ou larvas estranhas. Tudo era mais complicado naquele escuro. Bati nelas, mas elas não saíram e precisei arrancar uma a uma. Consegui tirá-las depois de algum tempo. Prossegui, sem saber para onde ir. Tremia de frio e de medo. O estômago roncava alto; parecia que tinha areia em minha garganta, tal a secura. Seguia sem compreender como continuava viva e como tinha força para continuar caminhando. (...)
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Abismo



(...) O inverno ainda se arrastaria por dois meses. Eles não tinham mais nada e nem a quem pedir. Pediam esmola, mas ninguém podia ajudar. Não havia saída. Eles abandonariam a casa apenas em último caso, pois ainda estava muito frio. Pelo menos Carmen seria poupada. Sequer sonhavam que Telma estava por trás daquela situação.
A criança sentiu um nó se formando no peito. Lineu não tinha nenhuma noção do que nascia naquele espírito. Seriam necessários mil e setecentos anos para limpar aquele rancor. Ela não conseguiu segurar aquilo e jogou tudo sobre ele.
― MONSTRO! COMO PODE FAZER ISSO? NUNCA FIZ NADA ERRADO! SEMPRE FUI UMA BOA FILHA!
O peito doía. Arfava. Tremia descontrolada.
― LINEU! ― Áurea atacou o marido, que apenas defendeu-se com as mãos na cabeça. ― LOUCO! NÃO POSSO DEIXAR QUE ISSO ACONTEÇA!
― Mulher idiota ― ele disse friamente; segurou a esposa. ― Quer ver sua filha morrer de fome? O inverno durará mais dois meses! Não temos nem um pedaço de pão! ― Lineu respirou fundo antes de explodir.
― DOIS MESES! ELA VAI MORRER AQUI! NÃO ENTENDE? NÃO HÁ OUTRA FORMA DE SALVÁ-LA! ― largou a mulher; virou-se, escondendo novamente o rosto.
― Carmen ― disse já mais controlado. ― Arrume suas coisas e vá. Vá agora. Você nunca me perdoará, mas precisa ir. Você não acredita, mas saiba que é o melhor. Talvez você entenda um dia.
A menina começou a juntar seus trapos com uma calma estranha.
― Não tenho mais pai ― a voz era sombria; o olhar era de pedra. ― Vai me pagar por me abandonar ― fechou os olhos e respirou fundo, buscando força de onde não existia.
― Será que eu não preferiria ficar aqui ― os olhos ainda estavam fechados ―, mesmo passando fome, do que virar uma mercadoria? Agora não precisa pensar mais, porque quem quer ir embora sou eu ― virou-se de súbito; olhou-o com duas flechas.
― Acha que não sei?


Nada poderia ser pior do que a acusação daquilo que ele não havia feito, pelo menos não fisicamente. (...)
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Queda




(...) Prendi a respiração e entrei na escuridão, seguida de Tamara. Lucas vinha na retaguarda. Via tudo em vultos. Sentia frio enquanto abria caminho na sombra compacta. Eu sabia onde era aquele prédio. Caminhávamos por uma estreita trilha de pedras pela qual eu já passara, mas ainda tenho dificuldade nesses ambientes mais densos. Gritos horrendos e vapores pútridos assustavam-me a todo instante. Apertava a mão de Tamara com força.
Ninguém nos via porque vibrávamos em frequência um pouco mais alta, mas era necessário vigiar. Aqui e ali ouvia algo se movendo e sabia que era alguém mergulhado na lama, possivelmente metamorfoseado em algum animal. Aquilo me causava calafrios. Sentia tudo muito pesado, quase como se estivesse no plano físico. Porém, em algum momento, senti uma vibração sutil que me reconfortou. Olhei para Tamara, que era apenas uma silhueta no escuro, e ela sinalizou que sim. Entendi que ela sentira a mesma energia. Algum espírito mais elevado parecia estar nos acompanhando, e isso já me deixou menos tensa.
Formas animalizadas passavam a todo instante, arrepiando-me até no osso com seus estranhos grunhidos. Precisava de concentração para esquecer-me e manter o foco na tarefa. Tudo que eu tocava era viscoso, escorregadio. O ar era uma resina, praticamente irrespirável. Em alguns lugares, vi que o chão fora da trilha era uma gosma. Achei que estava demorando muito e que tinha errado o caminho, mas fiquei aliviada quando vi o prédio da imagem plasmada por Sara, fracamente iluminado.
Tudo funcionava quase como no plano material, e por isso atravessamos a porta densa sem dificuldade. Ouvi duas pessoas conversando, ou discutindo. Um deles parecia o chefe. Vi que os dois tinham feridas, e alguns vermes espirituais rastejavam na pele macilenta. No fundo, um corredor descia para a masmorra profunda com algumas celas. Ouvimos parte da conversa. (...)

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Resgate



(...) Nelian estava no meio da cama, à altura do abdômen de Jonas, e colocou um aparelho articulado curioso, que estava ligado a uma grande base, sobre o plexo solar. Ligou a máquina e também um exaustor, que estava sobre um recipiente ao lado da maca. Ele sentiu algo como um formigamento interno, que logo se transformou em enjoo, e logo em vontade de vomitar. Ia vomitar mesmo! Nelian virou-o de lado, e uma gosma esverdeada e escura começou a sair da boca e do nariz. A substância ia caindo no recipiente, que era próprio para aquele procedimento. Parecia que uma grande quantidade de muco havia sido tingida de verde escuro.

― Isso... Calma... Está indo bem ― Nelian encorajava, segurando-o com uma mão e batendo de leve nas costas com a outra.

Um forte odor de vala era sentido próximo daquilo, e o exaustor impedia que tudo ficasse com aquele cheiro. Mesmo assim, o ar ficou pesado. Jonas respirou a longos haustos quando se livrou daquilo. Suava em bicas e estava cansado.

― Sim, amigo ― disse Nelian. ― Aquilo estava dentro de você. São energias concentradas do que existe em ambientes frequentados por companheiros menos preocupados com o espírito ― Jonas tossia. ― Está disposto a mudar seu padrão espiritual para evitar ou diminuir a aderência dessas energias daqui para frente? (...)

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Tratamento






2 comments:

  1. Meu caro amigo seu trabalho é maravilhoso. Esses dias eu dei uma olhada meio por cima devido as minhas correrias da vida, mas vou acompanhar o seu trabalho, pois achei muito bem criativo. E a forma que você expressa é muito original. Muito bom isso. Sucesso pra você e muito obrigado pela força e comentário em meu trabalho. Abraços

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